segunda-feira, setembro 27, 2010

71

Dificilmente me convencerão de que a história do filho pródigo não é a lenda daquele que não queria ser amado. Quando era menino, todos o amavam lá em casa. Cresceu, e, como não tinha outra alternativa, habituou-se à brandura daqueles corações, enquanto foi menino.
Mas, quando já era rapaz, quis despojar-se dos seus hábitos. Não seria capaz de o dizer, mas quando andava ao acaso, lá fora, todo o dia, e já nem sequer queria que os cães o acompanhassem, era porque eles também o amavam. Porque nos seus olhares havia observação, envolvimento, expectativa e receio; porque, diante deles, também não se podia fazer nada que não os alegrasse ou ofendesse. Mas o que ele então pretendia era indiferença íntima do seu coração que muitas vezes o acometia de manhã cedo, nos campos, e com uma tal pureza que ele começava a correr para não ter tempo nem fôlego para ser mais do que um leve momento em que a manhã se torna consciente de si.

(...)
Ficará ele a fim de repetir a mentira da vida indefinida que lhe atribuem e de parecer-se com todos eles em toda a sua extensão do seu rosto? Dividir-se-á ele entre a sensível veracidade da sua vontade e o grosseiro engano com que se tornam insuportáveis a seus olhos? Desistirá ele de vir a ser aquilo que poderia prejudicar aqueles membros da sua família que apenas têm um coração fraco?

Não, ele partirá. Por exemplo, quando todos estiverem ocupados a preparar a mesa de aniversário com todos aqueles objectos mal adivinhados que deveriam, uma vez mais, tudo apaziguar. Partirá para sempre. Só muito mais tarde terá a nítida percepção de como nessa altura fez o propósito de nunca amar, para não colocar ninguém na terrível situação de ser amado. Anos depois recordar-se-á e, tal como outros propósitos, também este foi impossível. Pois ele amou e voltou a amar na sua solidão, esbanjando de cada vez toda a sua natureza e com um temor indizível pela liberdade do outro. Aprendeu lentamente a atravessar o objecto amado com os raios do seu sentimento, em vez de neles o consumir. E ficava mimado pelo encanto de conhecer através da figura cada vez mais transparente da amada, a imensidão que ela abria ao seu interminável desejo de posse.

(...)

Quem poderá descrever o que então lhe aconteceu? Que poeta será capaz de o convencer a conciliar a extensão dos seus dias passados com a brevidade da vida? Que arte é suficientemente ampla para evocar simultaneamente a sua figura esguia, coberta por um manto, e o espaço desmesurado das suas noites imensas? 
(...)
Os que contaram a história tentam, neste ponto, recordar-nos a casa, tal como ela era. Pois só aí passou pouco tempo, um pouco de tempo contado, todos em casa podem dizer quanto. Os cães envelheceram, mas ainda estão vivos. Conta-se que um deles uivou. Todas as tarefas diárias sofrem uma interrupção. Há rostos que assomam às janelas, rostos envelhecidos e adultos de uma semelhança comovente. E num desses rostos, num muito velho, reconhecimento desfere repentinamente a palidez do seu golpe. O reconhecimento? Verdadeiramente apenas o reconhecimento? - O perdão. O perdão de quê? - O amor. Meu Deus: o amor.

Ele, o que foi reconhecido, ocupado como estava, tinha deixado de pensar nisso: que o amor ainda pudesse existir. É compreensível que de tudo o que então aconteceu apenas fosse transmitido o seguinte: o seu gesto, o gesto inaudito que nunca antes se vira; o gesto de súplica com que se prostrou aos seus pés, implorando-lhes que não o amassem. Assustados e cambaleantes ergueram-nos à altura deles. Interpretaram à sua maneira a impetuosidade dele, perdoando-lhe. Deve ter sido para ele um alívio indescritível que todos o tenham entendido mal, apesar da evidência desesperada da sua atitude. Provavelmente foi capaz de ficar. Pois via cada vez melhor, de dia para dia, que o amor deles, de que tanto se envaideciam e que entre si secretamente encorajavam, não lhe dizia respeito. Quase era obrigado a sorrir quando eles se esforçavam e tornava evidente que eram poucas as possibilidades de se lhe referirem. 
O que sabiam eles sobre quem ele era? Ele era agora extremamente difícil de amar e sentia que só Alguém o poderia fazer. Mas esse ainda não queria.

Fim das Anotações

(Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laurids Brigge, tradução de Maria Teresa Dias Furtado)
Só solidão desfeita. é isso que trazes, é isso que deixas.

e assim me entristeces. e assim não me perdoo no tempo. e assim se endurece, embrutece, e assim, nos tornamos uma pedra.

Eu quero uma pérola no coração, aqui, agora e para sempre. E não quero, nem preciso que a felicidade me visite. Não admito, sequer, que ela me assalte de novo e que por razão alguma torne a acreditar noutro ser que não eu.

domingo, setembro 26, 2010

não haver palavras és tu a desaparecer.



abandono

a quem senão a ti direi
como estou triste? mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
-de juntar o que me está doendo ao ven-
to que não bate mais à tua porta? eu sei

que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. em cada um está Cristo

sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado

ser por este absurdo. morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.

não haver palavras és tu a desaparecer.



Bernardo Pinto de Almeida

Heroin and bananas



I guess that i just don't know.

me too.



E aquilo que mais me incomoda é, afinal, que tu te intrometas nos meus pensamentos.


Porque eu tinha razão sobre a minha não espontaneidade e tu vieste confirmar que é, de facto, uma coisa que devo manter.
Porque me fizeste perceber que, independentemente do facto de seres muito, mas mesmo muito inteligente, isso não faz com que deixes de agir como a maioria das pessoas.
O que me leva a crer que és um perfeito idiota. E eu, dito isto, uma pessoa patética que quis acreditar no contrário, pondo de parte todas as minhas (des)crenças pessoais criadas ao longo de anos, isto só porque ainda insisto em manter a magia. Aquela que tu insistentemente matas como se fosse tua, como se fosse nada. 
Creio que te (des)gosto e por algum motivo é Domingo de novo e isso é mesmo coisa que hoje não gosto.

segunda-feira, setembro 20, 2010

Viva! (acho que não!)

Está tudo bem contigo, Marta? (Não, mas isso ainda te interessa?)

Não tenho aparecido, não te escrevi, e as poucas vezes que pensei em ti constatei que já não te quero lembrar, sequer.
Esta semana seria óptima para te esquecer de vez, o que me dizes a não tomarmos um café? Parece-te bem?
Não quero insistir muito no assunto, mas não quero que te lembres de mim só porque eu já me esqueci de ti.

*
Marta


(Tenho um monstro dentro do meu coração, a arranhar e a sangrar e a deixar-me morta. tenho um monstro fora de mim, a fazer-me chorar porque insiste em lembrar-te) (acho que a tristeza chegou e não sei o que lhe fazer, nem o que fazer de ti)

Não te lembres, deixa-me esquecer, deixa-me doer nesta coisa de carne e osso e palavras que sou. Eu sabia que não me ias gostar, eu sabia e deixei-te decepcionar-me. Porquê que fazes isto à Marta? Porquê?

domingo, setembro 19, 2010

Aquilo ali em cima é mentira...o mundo não é teu.

Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas


(Adília Lopes, Quem Quer Casar Com a Poetisa?)



sábado, setembro 18, 2010

Tu
(pintado com o pé)

Quando fomos apresentados
em pequenos
beijaste a mão direita
dela
a minha
viraste-a do avesso
para beijares a tua
o que fizeste
cortei a minha mão
como manda a Bíblia
e deitei-a fora
sou feliz porque sou inteligente


(Adília Lopes, Caras Baratas)

Toma lá também tu um suspiro. Que um dia, quando me apetecer, eu digo-te o que diabos estava a pensar...

sexta-feira, setembro 17, 2010

Eurydice





Este é o traço que traço em redor do teu corpo amado e perdido
Para que cercada sejas minhas

Este é o canto do amor em que te falo
Para que escutando sejas minha

Este é o poema — engano do teu rosto
No qual eu busco a abolição da morte

(Sophia de Mello Breyner Andresen)


( Une femme mariée, Jean Luc-Godard, 1964)

À revelação súbita, ao mistério das suas maravilhosas palavras.

E ao teu suspiro, que me doeu um instante, e agora lembro num labirinto de palavras. 
Seria cansaço ou lamento? Como uma primeira impressão que te escapa ao rosto tapado e que não mente.

São 17 e 56, disse-o baixinho. Olhei-te e repeti em voz alta, são 17 e 56 e só depois percebi que isso não se diz.


quarta-feira, setembro 15, 2010

Espera!

Deixa-me pensar um bocadinho....é que preciso mesmo de reflectir.
Não sei o que dizer. Aliás., é suposto saber o que dizer neste exacto momento?

Espera! Deixa-me pensar de novo....

Já passaram sete horas e ainda não sei o que pensar. Ridículo, bem sei.
Não percebo.
A ideia, breve, mas ideia, é que matei tudo com a minha lucidez, depois com a minha estupidez e, finalmente, comigo própria.
Não te memorizei o rosto, com medo de te olhar fixamente.
Não fiquei nervosa, mas temi todas as palavras que por breves instantes ousei dizer.

Eu disse, não tenho jeito para as pessoas, não tenho.

E não sei porquê, mas agora é que começo a duvidar de mim. Porque a Marta normalmente sentiria alguma coisa. Boa ou má, mas sentiria.

Amanhã penso nisso.

As coisas hão-de ser violentas, brilhantes e no fundo vão-me tocar, a cabeça vai estremecer e eu vou culpar-me. Eu sei. Sim, eu também tenho algum auto-conhecimento.

E depois não vais dizer nada. Porque eu não sou marcante, porque não há persistência na memória quando o objecto sou eu, eu física digo. Raios!

Olha, já sei tudo sobre a Adília Lopes, não um bocadinho, nem meia dúzia de poemas...
Agora posso ir ler Herberto Helder e ficar descansada. E depois posso ir dormir. Mas sei que me vou lembrar de ti. Sim, vou.

E depois, talvez quando for Domingo te lembres de mim. Ou então talvez me esqueças.
Até lá, só passaram oito horas.

E ainda tenho um "espera! Deixa-me pensar"...vai-se prolongar, vai, sim vai.

Depois digo-te o que pensei se pensar.

domingo, setembro 12, 2010

Canção da torre mais alta

Juventude ociosa
Escrava e submissa,
Por delicadeza,
Deixei fugir a minha vida.
Ah!, venha esse tempo
Com corações que se apaixonam.

Disse a mim mesmo: abandona,
E que ninguém te veja:
Nem mesmo a promessa
De alegrias mais altas.
Que nada te prenda, ou pare
Sublime retirada.

Dei tantas mostras de paciência
Que tudo eu para sempre olvide;
Temores e dores
Volatizaram-se nos céus.
Mesmo se uma sede doentia
Me obscurece as veias.

Assim o Prado
Deixado ao abandono,
Maturado e enflorido,
De cores-odores e ervas daninhas,
Entregue ao zumbido ensurdecedor
De sem moscas nojentas.

Ah! Mil vezes viúvo
Da trist'alma nua
Sem outra imagem
Que a da Senhora Mãe!
Será que se ora
À Virgem Maria?

Juventude ociosa
Escrava e submissa,
Por delicadeza,
Deixei fugir a minha vida.
Ah!, venha esse tempo
Com corações que se apaixonam.

( Arthur Rimbaud, O Rapaz Raro: iluminações e poemas, tradução de Maria Gabriela Llansol)

sábado, setembro 11, 2010

Mojo pin



A música chega por hoje.

Depois dou-te poesia e digo-te que ele ama Rimbaud. Depois.

quarta-feira, setembro 08, 2010

e eu que sou louco, um pouco, não ao ponto de ser belo ou maravilhoso
ou assintáctico ou mágico, mas:
um pouco louco,
porque faço com mãos estilísticas um invento fora e dentro dos estados
naturais:e a faúlha e o ar à volta dela, jóia, digo, quero-a de repente,
e as matérias maduras e dramáticas: ouro, petróleo:
e com que potência madibular me debruço sobre o prato,
e ávido e inculto,
com mão aprendiz colho o áspero alimento do mundo,
e rosto, membros, torso, radiações dos dedos,
trabalho no meu nome,
obra pequena de hemoglobina, enxôfre, células, osso, lume,
para estar mais perto de quem acaso me chame ou toque
---- eu,
sem beleza nem maravilha,
só dor,
desamor ou descuidada memória ----
mas conhece-me por isso que não é bem música,
talvez sim um som
dificílimo, seco, acerbo, rouco, côncavo, precaríssimo
de apenas consoantes,
pregos


(Herberto Helder, A faca não corta o fogo)


Hoje, tal como ontem, foi um dia outonal. Ontem esperei-te sabendo que não vinhas, esperei junto à parede, vendo a cortina de chuva e sentindo o cheiro a terra no ar. Sabia que não virias. Sabia e fiquei por lá remoendo o futuro como se de passado ou presente se tratasse. Temi a tua partida, mesmo antes de chegares. Serei eu louca. Não pouco como no poema, é certo. O medo é maior. Tu. Rapaz raro e estranho. Porque me fazes objectivar a luz e subitamente perder o espaço? 

O que eu tenho é sobretudo medo. Medo de viver. e vou desvivendo de desamor. e aguardando tristemente por ti, como se todos os dias fossem Outono.

Assim o será quando partires. e se agora cá não estiveres, não mais terei pedras cair sobre meu coração. mas apenas lágrimas, lágrimas outonais que caiem como hoje por razão nenhuma.



domingo, setembro 05, 2010


“Antigamente sabia-se (ou talvez se pressentisse) que se trazia a morte dentro de si, como o fruto o caroço. As crianças tinham dentro uma pequena e os adultos uma grande. As mulheres tinham-na no seio e os homens no peito. Tinha-se, a morte, e isto dava às pessoas uma dignidade particular e um calmo orgulho”.

(Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, tradução de Paulo Quintela)

Noite Antecipada

« (…)
Seguro na tua mão
e limpo-te a boca ao de leve.
sinto a tua mão gelada a apertar a minha.
Há vários dias que nem força tens para falar.
Agora o movimento da tua boca
indica que balbucias alguma coisa,
mas é impossível entender ao certo
o que me queres dizer.



Ergues, moribundo, as sobrancelhas
e olhas de novo na minha direcção.
Fitas-me com o mesmo sorriso na boca,
com a mesma expressão de horror nos olhos.
Abres mais o sorriso,
intensificas a expressão horrorizada
de quem sente de repente
a morte muito mais perto.
Balbucias de novo qualquer coisa,
mas é impossível entender ao certo
o que me queres dizer.»

(Frederico Lourenço, Santo Asinha e Outros Poemas)



Maldita idade que não é eterna, maldita morte que nos rouba a beleza da vida. Ninguém tão simples e sábio devia morrer. Ninguém. 
O poema lembra-me o avô moribundo, lembra-me a chegada da sua morte e o arrancar-lhe da magia. Lembra-me isso tudo e dá-me a certeza de que nunca hei-de compreender a morte da vida.