segunda-feira, setembro 27, 2010

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Dificilmente me convencerão de que a história do filho pródigo não é a lenda daquele que não queria ser amado. Quando era menino, todos o amavam lá em casa. Cresceu, e, como não tinha outra alternativa, habituou-se à brandura daqueles corações, enquanto foi menino.
Mas, quando já era rapaz, quis despojar-se dos seus hábitos. Não seria capaz de o dizer, mas quando andava ao acaso, lá fora, todo o dia, e já nem sequer queria que os cães o acompanhassem, era porque eles também o amavam. Porque nos seus olhares havia observação, envolvimento, expectativa e receio; porque, diante deles, também não se podia fazer nada que não os alegrasse ou ofendesse. Mas o que ele então pretendia era indiferença íntima do seu coração que muitas vezes o acometia de manhã cedo, nos campos, e com uma tal pureza que ele começava a correr para não ter tempo nem fôlego para ser mais do que um leve momento em que a manhã se torna consciente de si.

(...)
Ficará ele a fim de repetir a mentira da vida indefinida que lhe atribuem e de parecer-se com todos eles em toda a sua extensão do seu rosto? Dividir-se-á ele entre a sensível veracidade da sua vontade e o grosseiro engano com que se tornam insuportáveis a seus olhos? Desistirá ele de vir a ser aquilo que poderia prejudicar aqueles membros da sua família que apenas têm um coração fraco?

Não, ele partirá. Por exemplo, quando todos estiverem ocupados a preparar a mesa de aniversário com todos aqueles objectos mal adivinhados que deveriam, uma vez mais, tudo apaziguar. Partirá para sempre. Só muito mais tarde terá a nítida percepção de como nessa altura fez o propósito de nunca amar, para não colocar ninguém na terrível situação de ser amado. Anos depois recordar-se-á e, tal como outros propósitos, também este foi impossível. Pois ele amou e voltou a amar na sua solidão, esbanjando de cada vez toda a sua natureza e com um temor indizível pela liberdade do outro. Aprendeu lentamente a atravessar o objecto amado com os raios do seu sentimento, em vez de neles o consumir. E ficava mimado pelo encanto de conhecer através da figura cada vez mais transparente da amada, a imensidão que ela abria ao seu interminável desejo de posse.

(...)

Quem poderá descrever o que então lhe aconteceu? Que poeta será capaz de o convencer a conciliar a extensão dos seus dias passados com a brevidade da vida? Que arte é suficientemente ampla para evocar simultaneamente a sua figura esguia, coberta por um manto, e o espaço desmesurado das suas noites imensas? 
(...)
Os que contaram a história tentam, neste ponto, recordar-nos a casa, tal como ela era. Pois só aí passou pouco tempo, um pouco de tempo contado, todos em casa podem dizer quanto. Os cães envelheceram, mas ainda estão vivos. Conta-se que um deles uivou. Todas as tarefas diárias sofrem uma interrupção. Há rostos que assomam às janelas, rostos envelhecidos e adultos de uma semelhança comovente. E num desses rostos, num muito velho, reconhecimento desfere repentinamente a palidez do seu golpe. O reconhecimento? Verdadeiramente apenas o reconhecimento? - O perdão. O perdão de quê? - O amor. Meu Deus: o amor.

Ele, o que foi reconhecido, ocupado como estava, tinha deixado de pensar nisso: que o amor ainda pudesse existir. É compreensível que de tudo o que então aconteceu apenas fosse transmitido o seguinte: o seu gesto, o gesto inaudito que nunca antes se vira; o gesto de súplica com que se prostrou aos seus pés, implorando-lhes que não o amassem. Assustados e cambaleantes ergueram-nos à altura deles. Interpretaram à sua maneira a impetuosidade dele, perdoando-lhe. Deve ter sido para ele um alívio indescritível que todos o tenham entendido mal, apesar da evidência desesperada da sua atitude. Provavelmente foi capaz de ficar. Pois via cada vez melhor, de dia para dia, que o amor deles, de que tanto se envaideciam e que entre si secretamente encorajavam, não lhe dizia respeito. Quase era obrigado a sorrir quando eles se esforçavam e tornava evidente que eram poucas as possibilidades de se lhe referirem. 
O que sabiam eles sobre quem ele era? Ele era agora extremamente difícil de amar e sentia que só Alguém o poderia fazer. Mas esse ainda não queria.

Fim das Anotações

(Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laurids Brigge, tradução de Maria Teresa Dias Furtado)

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